Quinze anos depois da dobradinha FHC-Lula no Palácio do Planalto, permitida a ser vista assim mesmo, como uma continuidade, o economista Carlos Lessa profere uma boa e uma má conclusão sobre o bolso do trabalhador.
O sopro antes do tapa: "O dado mais positivo, do ponto de vista social, do governo Fernando Henrique e principalmente do governo Lula, é que o salário mínimo real cresceu".
Porém, alegria de assalariado dura um parágrafo: "A participação do salário na renda nacional brasileira está diminuindo. O que está crescendo vertiginosamente é a participação de segmentos financeiros".
Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, carioca de 73 anos, deixou a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no segundo ano do governo petista por discordar das diretrizes da política econômica.
Em entrevista a Terra Magazine, ele aponta que o governador paulista José Serra - de quem se aproximou durante o exílio no Chile - precisará fugir "do programa tucano clássico" na candidatura presidencial.
"Vai ter que fazer um discurso de inovação. Não vai poder defender privatização, estabilização de preços às custas de juros altos, valorização cambial maluca", recomenda o ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Ele fez umas coisas corajosas como ministro da Saúde, algumas coisas positivas. É claro que, num governo neoliberal, o que ele podia fazer era pouco".
Porém, Lessa, que migrou do PMDB ao PSB recentemente, aferra-se mesmo à ameaçada pré-candidatura do governador paranaense Roberto Requião, antigo correligionário, em detrimento do deputado Ciro Gomes, do seu novo partido. "Acho que o Requião, chegando ao processo nacional, é o presidente provavelmente. Porque ele tem um desempenho como governador que é uma coisa absolutamente espetacular".
O Rio e a alma
Em relação ao futuro, Lessa condena a expansão nacional da termoeletricidade. "O Brasil é a economia que tem o melhor balanço energético", defende o uso de recursos renováveis. "Tem uma situação maravilhosa, 77% da nossa eletricidade é de origem hídrica".
Sobre o pré-sal, distribui alvíssaras e alertas. "É muito positivo, um ativo que vai se valorizar sem parar com a escassez crescente de petróleo no mundo", comemora. Mas avisa: "É um grave equívoco o Brasil virar país primário exportador de petróleo. Não há destino pior do que exportador de petróleo". Para ele, esse potencial "tem que ser utilizado para promover o desenvolvimento da economia brasileira".
Acredita Lessa que outro evento promissor, a Olimpíada de 2016, renova as esperanças para a Cidade Maravilhosa, que ainda não teve paga "a dívida da transferência da capital para Brasília". Sua decadência, diz, afeta seriamente o Brasil.
- Era o símbolo do País. O Rio foi perdendo essas dimensões. O dramático é que nenhuma outra cidade brasileira assumiu essas dimensões. É como se a alma brasileira fosse ficando pequena.
Agora, ele vê como necessidade dos Jogos Olímpicos a priorização de sua terra natal. "O que a Olimpíada faz é, primeiro, permitir ao Rio de Janeiro disputar a atenção nacional quanto à sua infraestrutura urbana. Ele tem sido deixado de lado nos últimos 25 anos certamente".
A mobilidade urbana é a questão que mais o preocupa. "Se não for modificada a matriz de transporte coletivo, vamos quebrar o recorde olímpico de congestionamento de trânsito", ironiza.
Sua receita prima pela simplicidade, incluindo a complexa distribuição espacial. "Só tem uma maneira de resolver a questão da favelização e da habitação popular: é colocando para valer mesmo o metrô e trem urbano", crava o professor, com passagem por universidades do Brasil, do Chile, da Venezuela, do México e da Espanha.
Leia a entrevista.
Terra Magazine - A Fundação Getúlio Vargas divulgou que, pela primeira vez, a classe C, com arrecadação entre R$ 1.115 e R$ 4.807 por mês, representa a maior parcela da renda nacional e corresponde a 46% dos rendimentos de pessoas físicas...
Carlos Lessa - O problema é que os estudos sobre distribuição de renda, na verdade, o que fazem é acompanhar o rendimento predominantemente do salário. Por este critério, houve esta melhoria relativa do grupo C. Agora, a vedadeira distribuição de renda do País é muito pior do que esta que está indicada porque você tem quase 37% da renda nacional que se expressa sob a forma de rendimentos de salários. Mas o conceito para este estudo (da FGV) são os estudos de orçamento familiar.
Então, o senhor acha...
É positivo isso, sem dúvida nenhuma, do ponto de vista do equilíbrio social. Claro que é. Agora não é uma indicação de que a distribuição de renda tenha melhorado no País. Por volta de 1960, a renda nacional atribuída a salários no Brasil era maior do que 50%, era algo como 52 ou 53%. Na época, nos países do primeiro mundo, a média era de 65%. Nós estamos abaixo da média do primeiro mundo, digamos assim. Mas hoje a informação que se tem é que está em torno de 37 e 38%. Ou seja, a participação do salário na renda nacional brasileira está diminuindo. O que está crescendo vertiginosamente é a participação de segmentos financeiros. Numa visão de tendência, isso é ruim. Dentro da marcha dos que recebem salários, os salários da faixa D melhoraram.
A tendência, no Brasil, é que o leque salarial vá fechando. Ou seja, a diferença entre os que recebem o menor salário e o maior salário, na renda nacional, vai diminuindo. Isso porque o salário real mínimo está crescendo, em termos, o que é muito positivo. Eu diria que o dado mais positivo, do ponto de vista social, tanto do governo Fernando Henrique e principalmente do governo Lula, é que o salário mínimo real cresceu. Agora, os salários de cima não tiveram recomposição. Então, vai fechando o leque.
O senhor é padrinho de casamento do governador José Serra e participou do início de mandato do presidente Lula. Como o senhor avalia esses 7 anos de Lula e como vislumbra a possibilidade de seu cumpadre como presidente da República?
Eu não estou monitorando de perto o que vai acontecendo com o processo político. Eu acho que, se for ponta a cabeça Serra e Dilma, é alta a probabilidade de o Serra ganhar, se ele fizer um discuros que não fique colado no velho discurso tucano. Ele vai ter que fazer um discurso de inovação e vai ter que lançar mão de dimensões ou dados ou proposições que são diferentes do programa tucano clássico. Ele não vai poder defender privatização, estabilização de preços às custas de juros altos, valorização cambial maluca. Vai ter que falar de questões dramáticas que estão colocadas aí: infraestrutura de transporte, infraestrutura de energia, apagão portuário, apagão elétrico, infraestrutura metropolitana caindo aos pedaços, falta de transporte coletivo. Vai ter que falar de educação, que a qualidade caiu muito. Vai ter que dar uma explicação de como ele se saiu como governador de São Paulo. Como ministro da Saúde, ele consegue se defender bem. Acho que fez umas coisas corajosas como ministro da Saúde, algumas coisas positivas. É claro que, num governo neoliberal, o que ele podia fazer era pouco. Agora, eu pessoalmente quero um terceiro candidato nesta sucessão.
Ah, é? Quem?
Meu terceiro candidato, de coração, seria Roberto Requião. Agora, não sei se o PMDB vai ter candidato próprio.
Mas o senhor acha que ele teria esta envergadura para concorrer nacionalmente?
Acho que o Requião, chegando ao processo nacional, ele é o presidente provavelmente. Porque ele tem um desempenho como governador que é uma coisa absolutamente espetacular. Pratica a mais baixa tarifa de energia elétrica do Brasil e a empresa dele (Companhia Paranaense de Energia, Copel) é a mais cotada na Bolsa de NY - a única que não foi privatizada, importante. Não cobra pedágio nas estradas estaduais do Paraná. Isentou 83% das firmas de pagar qualquer imposto estadual. Nenhum governador fez nada parecido. O programa educacional tem resultados absolutamente espetaculares. O problema é que a imprensa não gosta dele. Não dá espaço, né? A grande mídia. Ele tem problema nacional porque o paranaense ou ama ou odeia o Requião, não tem segundo termo. Mas, se ele não for candidato, acho que é possível que o Serra ganhe, sim.
Como o Brasil deve usufruir do pré-sal e quais são os riscos da má utilização dos recursos gerados?
Eu sempre tenho dito que é um grave equívoco o Brasil virar país primário exportador de petróleo. Não há destino pior do que exportador de petróleo. Agora, é muito positivo dispor do pré-sal porque é um ativo que vai se valorizar sem parar com a escassez crescente de petróleo no mundo. Então, é uma reserva internacional que está debaixo da terra.
O petróleo tem que ser utilizado para promover o desenvolvimento da economia brasileira, o que, para mim, significa dizer, primeiro, uma coisa que a Petrobrás já começou a fazer, que acho muito positivo: colocar as encomendas todas para dentro do País. Segundo, uma coisa que não sei ainda se o Lula vai cumprir ou não: a Petrobrás não virar exportadora de óleo pesado, de óleo cru. Aparentemente, em 2009, pela primeira vez, houve superavit nas exportações de petróleo. Em terceiro lugar, vai depender muito de não haver a tentação de não expandir termoeletricidade, ao invés de hidroeletricidade. Porque a termoeletricidade usa óleo combustível, usa gás e usa até diesel. Tem 66 termoelétricas em construção no Brasil. Isso significa que, nos próximos quatro anos, a tarifa de energia elétrica vai subir acima da inflação.
A longo prazo...
A longo prazo é um horror. Porque, se há uma coisa de que o Brasil dispõe, é de hidroeletricidade. Acho um erro construir uma estrutura de consumo de energia não renovável. O Brasil pode e tem tudo pra ser, e é ainda hoje, a economia que tem o melhor balanço energético. Tem uma matriz energética em que quase 50% é renovável. No mundo todo, o renovável é 10 vírgula qualquer coisa por cento. Nos países de primeiro mundo, é 6 vírgula qualquer coisa. Então, o Brasil tem uma situação maravilhosa, 77% da nossa eletricidade é de origem hídrica.
Algum outro país tem isso?
Só a Noruega tem um balanço parecido.
O senhor defende a ideia de que a favelização do Rio de Janeiro decorre dos problemas estruturais...
Isso é muito simples. Na verdade, não é nem problema estrutural. Eu acho que a favela é a solução que o povão encontrou para construir sua própria casa, na ausência de políticas e de poder de compra para fazê-la pela economia de mercado clássica. Por outro lado, morar em favelas, do ponto de vista popular, é, muitas vezes, muito melhor do que morar num lote afastado. Porque você não tem o problema do enorme tempo e gasto de deslocamento entre o local em que você sobrevive e o local em que vive. Aqui, no Rio, a informação que se tem é que o tempo médio de deslocamento residência-trabalho-residência está em 2h10. Ora, morando numa favela, na Zona Sul, e ganhando a vida na Zona Sul, a pessoa gasta não mais do que meia hora. Então a qualidade de vida é melhor, apesar de a qualidade de habitação ser pior. Tem o gasto de tempo e o de dinheiro.
E qual é a solução para melhorar a infraestrutura urbana a partir da realidade das favelas agora?
Só tem uma maneira de resolver a questão da favelização e da habitação popular: é colocando para valer mesmo o metrô e trem urbano. Aqui, no Rio de Janeiro, não compreendo por que não existe metrô de superfície, usando os canais da antiga Central do Brasil e da Leopoldina. São planos, não têm desapropriação e é facílimo instalar o metrô ali.
Como o senhor avalia a chance de melhorar a cidade com a Olimpíada de 2016?
É muito positiva potencialmente para o Rio de Janeiro a Olimpíada. Agora, se não for modificada a matriz de transporte coletivo, vamos quebrar o recorde olímpico de congestionamento de trânsito.
Como o senhor acredita que a Olimpíada pode se ramificar na pequena economia e subir os morros?
Eu não acho que ela tenha muita ligação por aí não. Acho que o que a Olimpíada faz é, primeiro, permitir ao Rio de Janeiro disputar a atenção nacional quanto à sua infraestrutura urbana. O Rio de Janeiro tem sido deixado de lado nos últimos 25 anos certamente. A última grande obra rodoviária do Rio foi a Linha Amarela. O Rio não tem praticamente melhoria de infraestrutura significativa nos últimos, sei lá, 15 anos. Então é fundamental, do meu ponto vista, que o Rio, sendo sede da Olimpíada, vai ter que ter prioridades. Talvez finalmente pague a dívida da transferência da capital para Brasília.
O que o Rio representa para o Brasil?
Eu tenho até um livro sobre isso (O Rio de Todos os Brasis, 2000). Acho que o Rio foi, no passado, o símbolo do orgulho nacional. Era o Rio que tinha o Cristo Redentor, que tinha a Praia de Copacabana, era a terra do samba, e era a capital do País. Era o símbolo do País. O Rio foi perdendo essas dimensões. O dramático é que nenhuma outra cidade brasileira assumiu essas dimensões. É como se a alma brasileira fosse ficando pequena. Acho que a Olimpíada tem este efeito de introduzir um banho de ânimo na população. Mas precisa provar isso com muito cuidado. Sem o metrô, sem o trem no Rio e em São Paulo, o risco de não dar certo (a organização de Olimpíada e Copa do Mundo) é terrível.
Mas o prefeito Eduardo Paes (PMDB) já declarou que pode decretar feriado ou ponto facultativo, durante a Olimpíada; não cria legado nenhum (para a mobilidade urbana), mas consegue realizar a competição.
Acho que o prefeito está dizendo isso para ganhar tempo. Porque não é verdade. Você, por baixo, pode imaginar perfeitamente que a Olimpíada vai gerar uma pressão demográfica bem superior à do Carnaval. Já vi congestionamento no Rio com feira de livro. Sempre vou àquela feira de livro na Barra da Tijuca, no Riocentro. Imagina competições esportivas acontecendo, ao mesmo tempo, em diversos pontos da cidade.
Eliano Jorge
Terra Magazine
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